quinta-feira, 19 de julho de 2018

Crônicas de um pai: a prateleira de brinquedos

Crônicas de um pai: a prateleira de brinquedos

Chegamos tarde, dentro de poucos minutos a noite chegaria e com ela o frio. Eu precisava adiantar o trabalho da prateleira de brinquedos, decidi que faria isso no chão de nossa sala. Precisava tão somente medir e riscar a madeira. Os cortes seriam feitos em outro momento e ao ar livre. Em virtude da hora adiantada medir e riscar era tudo o que poderia fazer. Decidi-me também a fazer isso dentro de casa pois sabia que Lulu estaria ao meu lado. Não me deixaria sozinho com um monte de ferramentas legais.

Havia a madeira, as réguas, a trena e o lápis. Tudo simples. Então Lulu reordenou tudo. Tomou o lápis de minha mão e começou sem trena ou medições a riscar a madeira sob os seus pés. Isso depois de tornar as folhas de papel nas quais eu rabiscara o desenho e as medidas da prateleira impossíveis de serem decifradas. Mas, francamente, apesar disso, o projeto redesenhado ficou perfeito: radical e simples. Senti falta, por fim, de uma ferramenta que naquelas circunstâncias seria imprescindível: a borracha. O meu traço e o de Lulu na madeira, por vezes, coincidiam e apesar das cores diferentes - eu usava grafite e ela o azul-marinho - havia relativa confusão. Não bastasse isso ao sentar e brincar sobre a madeira os traços esmaeciam.

Levantei-me e percebi o caos simpático de sinais. Minha filha que tanto pede para fazer arte encantou-se com a sua tela gigante. Decidi-me a trazer-lhe uvas. Ela adora uvas e acreditei que poderia ficar ao meu lado e ao mesmo tempo ocupar-se das uvas. Teria tempo para adiantar e concluir as medições. Enganei-me. Eu a sentei na extremidade da madeira, ela ficaria longe da trena e da régua, desta forma poderia retomar as medições e riscar a peça. Quando se viu com uvas em seu colo, sorriu e começou a devorá-las. Passo seguinte, com a boca cheia, pôs-se a escorregar sentada. Pote de uvas em uma das mãos, a segunda mão apoiada sobre a madeira Lulu deslizou sobre a peça e, assim, borrou um pouco mais as linhas já castigadas.

Lulu parou apenas quando o seu pé apoiou-se sobre a régua de riscar. Ela estava de volta ao trabalho. No final, nos salvamos. A madeira, apesar de tudo, exibe as marcas necessárias para a segunda etapa do trabalho: o corte. Lulu está satisfeita, feliz, afinal, comeu uvas e fez arte em uma tela que não tinha fim. Descobriu a textura do lápis azul e do grafite sobre a madeira. Não bastasse isso, fez de minha trena um cachorrinho a levar pela coleira.

Dona Vany não está nada satisfeita, disse que pagou pelo serviço de marcenaria e nada está pronto. Respondi-lhe dizendo dos imprevistos na oficina, mas não arredou pé de ter a prateleira pronta. A vida segue bem em nossa casa sem prateleira de brinquedos e Dona Vany sorri contente. Apenas o lápis azul-marinho não sorri, perdeu a boca, perdeu a ponta de tanto riscar, mas isso tem conserto. Noutro dia, noutra hora será a vez da serra trabalhar. O que vou fazer com a Lulu ainda não sei?

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