sexta-feira, 26 de abril de 2019

Crônicas de um pai: o último leitor

Crônicas de um pai: o último leitor

estava longe de casa quando o telefone tocou. velha amiga falava da alegria de assistir entrevista veiculada pela televisão francesa com escritor libanês. contava admirada o que ouvira e acreditava, assim confessou, que gostaria também. eu conhecia o escritor há tempos , já circulavam no brasil desde os anos 80 alguns dos seus trabalhos. depois, mais calma, falou de sua decepção. (alegre e decepcionada ao mesmo tempo, assim era a minha amiga) saiu pelas ruas e o buscou na livraria de sua predileção. a leitura a acabrunhou. não gostou, queria a entrevista. contou-me que ainda tinha os livros nas mãos, que o comprara para mim, mas desistira do presente, acreditou que não valeria.
ao desligarmos eu ainda tentava entender tudo o que acontecera. Era sábado eu acordara tarde, minha amiga e eu estávamos longe de casa, longe do brasil. separados pelos pirineus resolvi visitar as minhas livrarias prediletas. encontrei versão castelhana e após o jantar voltei para casa. era noite quando voltei ao quarto e sentei à mesa de estudos.
li e chorei. não me lembro de ter chorado tanto. nem mesmo quando descobri goethe e os seus monstros. não parei de ler. quando muito eu o fechava e o deixava repousar ao mesmo tempo que me perguntava sobre o mundo que ele colocava em revolução dentro de mim. eu era o leitor daquele livro. conhecia as histórias. eram histórias de famílias e de partidas. eu as reconhecia. eram velhas como as canções e os brinquedos que nos acompanharam na infância. e, pior, conferiam sentido a peças que eu não sabia encaixar em meu quebra-cabeça. li e o repudiei. o que se passa? nos dias seguintes, ao entrar no quarto, as dezenas de livros que coloriam minha estante e mesa eram nada. só havia ele. marcado por um sem número de papeletas que mostravam meus rastros de leitura e as minhas perturbações.
voltei. voltei semanas depois ao brasil. trouxe o livro das minhas perturbações. jamais me esqueci daquela experiência. ainda choro ao me lembrar da leitura. minha amiga partiu. as dores a derrotaram. ainda vivo o luto de sua partida. deixou-me as saudades e a lembrança do livro que tanto me perturbou. o livro que comprou e jamais me entregou, mas me deu presente.


quinta-feira, 25 de abril de 2019

Crônicas de um pai: observações de bichos ao pé da cama (ou a jam session de pai e filha)

Crônicas de um pai: observações de bichos ao pé da cama (ou a jam session de pai e filha)

há palavras lindas, no caso, é uma expressão: jam session. adoro a ideia de músicos tocando sem saber o que vão fazer, mas certos de que querem tocar juntos. foi assim mesmo, nos posicionamos em nosso posto de observação na cama e ficamos a acompanhar os animais que estavam pelo chão do quarto. binóculos imaginários criados com as palmas das mãos dobradas nos permitiam descobrir a vaca que pastava, a formiga que cavalgava a minhoca, o sapo que deixou a lagoa para passear na floresta, a aranha que comia maçãs e o jacaré que mordia o meu pé.

ao me dar conta da alegria de minha filha entendi que nossa jam session está perfeita, falta agora pedir que a mãe nos acompanhe.

terça-feira, 23 de abril de 2019

Crônicas de um pai: crescer

Crônicas de um pai: crescer

eu já andava surpreso com a moda de pentear bonecas e pintar as unhas. agora, os momentos de brincar sozinha tornam a mudar. fica longos períodos olhando para o céu a buscar estrelas. observa calada o que a rodeia e parece guardar o mundo na mão que leva fechada.
crescer não é simples; mudar de lugar, aprender e apreender o mundo entre os dedos das mãos, comunicar-se, fazer-se atendida, desentender-se com os outros enquanto pede abraço.
os sonhos crescem.

Crônicas de um pai: despedida

Crônicas de um pai: despedida

certa vez conversava com amiga que lamentava a doença neurológica de um conhecido seu dos tempos de infância. 'ele se foi, está lá, mas de nada lembra. contou-me tudo, desabafou e chorou. ele levava lembranças minhas, agora, tudo se foi'. hoje a amiga responsável pela história partiu, não por doença neurológica, mas dores do tempo e do câncer.
'que história triste, papai! a malu tá triste!'
venha, vamos brincar no quintal. precisamos encontrar o senhor tatu-bola.
'eeeeeeba! tatu-bola, venha qui!'

Crônicas de um pai: tetê de laranja ou de brócolis

Crônicas de um pai: tetê de laranja ou de brócolis

as mamadeiras não são mais as mesmas, não me lembro quando começou, agora as mamadeiras guardam variedade de sabores e aromas. há a mamadeira de melancia, aliás, ontem à noite foi a última do dia.
'papai, qué tetê de melancia', disse-lhe que faria a mamadeira especial com a melhor melancia da casa. lulu sorriu ao me ver carregando o seu pedido. ajeitou-se no travesseiro e mamou.
já pela manhã pediu um de laranjas. assim seguem os dias, o cardápio muda.

Crônicas de um pai: a páscoa

Crônicas de um pai: a páscoa

creio que é a época do ano na qual minhas lembranças mais voam, mais saem das gavetas. minha mãe partiu em 2015, ouço os seus passos ainda. ralha comigo pelo que não fiz ou que fiz mal feito. orgulha-se de mim em silêncio. ouço mais elogios e declarações amorosas de terceiros. minha mãe era exigente comigo, já com as amigas falava dos meus feitos reais e sonhados.
ensinou-me a rezar e a gostar de preces. acostumou-me às lentilhas e aos charutos de folha de uva. levou-me pelas mãos quando ficamos sozinhos - apenas nós dois - e a chuva apertava. mostrou-me a pinacoteca de são paulo e o cinema do bairro no qual vivíamos. ensinou-me a apontar lápis de cor e a encapar cadernos, deu valor às cores de meu desenho ao mesmo tempo em que ouvia paciente as histórias que eu imaginava.
ria de minhas meninices e chorava, chorava muito. de tanto chorar machucou-se. refez-se aos poucos, parou de chorar e fez cara de contente. recobrou as chaves do mundo, mas trancou-se em sua mente. aqui e ali sorria, vez por outra lembrava-se da menina que era e ficava a correr campos de piraju com as suas irmãs.
feliz páscoa, minha mãe!

quarta-feira, 10 de abril de 2019

Crônicas de um pai: cuidados médicos

Crônicas de um pai: cuidados médicos

(da menina-quase mocinha que sabe dizer quem é e do que precisa)

ela pega o telefone e dispara:

'dôtora, alô dôtora! papai tá doente, é o joero (joelho)'

´papai, toma remédio! abre boca, toma tudin!'

Crônicas de um pai: 'papai, qué pão!'

Crônicas de um pai: 'papai, qué pão!'

'aqui está o pão com requeijão que você adora!'

'não, não qué pão, manu qué pão'

(ela desce da cadeira e abre o armário
procurando pelo seu 'pão', ela o encontra e
me entrega)

'não consegue, abre pão'!

'entendi, o que quer, você procura o 'pãonetone'

Crônicas de um pai: 'quero batata'

Crônicas de um pai: 'quero batata'

'macarrão, maria luíza!'

'não, não qué macarrão, qué batata batata...êba! batata!'

Crônicas de um pai: 'mamãe, conta história'

Crônicas de um pai: 'mamãe, conta história'

(junto à cama deixo livros, são meus últimos acordes antes de dormir, às vezes brigo com o sono para terminar a página)

dia desses, lulu pediu a mamadeira da noite, deixei-a dizendo que prepararia uma especial. quando voltei surpreendi luíza tomando nas mãos um dos meus livros:

'vou conta história. era vez um lobo na floresta; pronto, mamãe, conta história castelo'.

'sim, meu amor, havia uma ovelha que morava na floresta e era muito feliz, o nome dela era cacá'.

(entrei na brincadeira e ficamos longos minutos. a história passou de uma mão para a outra. a mamadeira mal recebeu atenção, havia tanto para contar que a boca não queria saber de leite; definitivamente maria luíza cresceu um bocadinho mais na noite de ontem. agora é esperar para saber o que criará logo mais)

terça-feira, 9 de abril de 2019

Crônicas de um pai: quebra-cabeça

Crônicas de um pai: quebra-cabeça

ela se divertia ao montar o jacaré do quebra-cabeça virtual. o aplicativo era simples e bem feito. foi aí que o mundo caiu, busquei por outro na loja de aplicativos: jogos infantis...dinossauros.
apaixonada pelos monstros busquei jogo que a divertisse. ao abril-lo dei-me conta que o tal jogo infantil era de caçar dinossauros. havia arma, mira e um animal correndo da direita para esquerda.
como ele foi classificado como infantil? por que alguém quer matar os dinossauros?

'lulu, deixe estar, vamos salvar o dinossauro, ele passará a viver em nosso quintal. ele pode dormir junto com o caracol e o tatu-bola. serão grandes amigos e se abrigarão das chuvas na lavanderia dentro de nossa máquina de lavar roupa'.

Crônicas de um pai: natal em abril

Crônicas de um pai: natal em abril

'papai'

'diga, meu amor!'

'cadê papai noel'

'papai noel está dormindo, chegou do trabalho e foi dormir'

'papai, quero presente de natal'

'meu amor, ainda faltam alguns meses, estamos em abril'

'papai, quero papai noel'

'filha, ele chegará em dezembro apenas'

'papai, quero papai noel'

'o tempo chegará, meu tesouro'

'papai, quero papai noel'



Crônicas de um pai: parabéns


Crônicas de um pai: parabéns

cantar parabéns e ajudar a fazer bolo (de cenoura). os dias correm e o número de desaniversários só faz crescer, até mesmo no dia do meu aniversário a festa maior foi a dela. 
ela sabe das coisas, aprendeu o caminho da felicidade.

Crônicas de um pai: a avó nadima

Crônicas de um pai: a avó nadima

ainda que usando cadeira de rodas lá vai a avó nadima aspirar a casa, ela quer receber lulu e teme agulhas e alfinetes perdidos. ainda quando todos dormem, faz pudim de pão para os que chegam logo mais.
sandra e bianca não tardam e rodam a casa com lulu nos braços. tia bi senta-se na cama da avó nadima e ajuda a cozinha prática e moderna de maria luíza: arroz, feijão e milho. ainda há tempo para pintar unhas e ensaiar cambalhotas. elas parecem duas meninas felizes, correm descalças e sorriem.

muito obrigado!

(lembranças gi!)

Crônicas de um pai: a tia bi e o fá da kombi

Crônicas de um pai: a tia bi e o fá da kombi

além dos aviões há a kombi, falo de paixões. apenas a da kombi consigo reconhecer o começo, a dos aviões ainda não achei o fio.
ainda menina de berço que aprendia a engatinhar, coloquei em seu quarto uma pequena kombi. brinquedo de fricção eu a encantei muitas vezes subindo pelas paredes e rugindo aquele motor plástico de molas. lulu parava para ver do que se tratava e encantada pedia a kombi.
não demorou e o amor despertou. sentada em sua cadeira e a partir de sua janela favorita ela descobre o mundo das ruas e dos carros. 'olha a kombi grande', 'volta aqui, kombi!'
não demorou e descobriu os parceiros com os quais pode compartilhar as suas paixões, foi assim que o esposo da tia bi virou o fá da kombi. ela o batizou, assim mesmo, sem rodeios e nada.

Crônicas de um pai: quero brincar

Crônicas de um pai: quero brincar

ela nos conta do que brincar e nos chama. nos pede companhia para dançar e sorrir. ela cresceu e agora quer pintar as unhas, as suas próprias e as de sua boneca.

'maria luíza, venha colocar o tênis, você está espirrando!';

'cacá, coloca sapato, você tá doente'

'eu calço os seus sapatos e vocês os da cacá!

'não quero coloca sapato'

'lulu, você está espirrando'

'manu está com soluço: ic! ic!' 'não, não quero sapato! quero chupeta e tetê!'

'vou fazer, fique no sofá, nada de descer descalça'

''cacá, volta aqui, tá fugindo!'

'maria luíza, é você quem está fugindo...descalça!'

Crônicas de um pai: o meu crachá

Crônicas de um pai: o meu crachá

dia desses saí tão ligeiro do trabalho  que cheguei ao colégio usando ainda o crachá. não me dei conta. percebi que havia algo diferente quanto lulu ficou a me olhar como quem pergunta: 'o que é isso?' dito e feito, ao ganhar o meu colo quis saber o que era o ' meu colar'.
quando chegamos em casa fui obrigado a usá-lo ainda durante muitos minutos. encantou-se com a novidade.

Crônicas de um pai: as bonecas

Crônicas de um pai: as bonecas

a maneira de brincar de bonecas anda a mudar. até um tempo atrás, lulu via a boneca como alguém para repetir e viver as suas histórias de menina pequena: mamar, tomar banho, trocar as fraldas. há algo de diferente quando a boneca serve para pentear os cabelos.
(a terra tremeu)

Crônicas de um pai: o avião do patati e do patatá

Crônicas de um pai: o avião do patati e do patatá

no final de semana levamos a bisavó de maria luíza ao aeroporto. após correr o saguão em diferentes direções e buscar coelhos e jacarés imaginários decidimos levá-la para ver o pátio de aviões.
lá estava a grande paixão de maria luíza: aviões de todos os tamanhos e modelos, cores e letras. encantou-se, gritou plenos pulmões e bateu, sem querer, a cabeça no vidro do mirante. era muita alegria para uma menina de 2 anos e 5 meses.
decepcionou-se um pouco quando percebeu que não ganhavam o céu e ficavam parados. lembrou-se da tia bi com quem ama subir ao terraço da casa da avó nadima para buscar aviões no céu. os seus agora não faziam nada, ficavam ali. voltou-se para os caminhões e tratores que trafegavam pela pista.
entre as frases felizes havia 'o avião do p. e do p.'. não conseguíamos entender a associação, mas concordamos: ' sim é!. eu e vany percebemos que a nossa menina havia memorizado o formato de letras. havia aeronave estacionada no pátio que era da mesma linha aérea que patrocina desenho da dupla de palhaços que ela ama assistir.
ela não sabe ler, mas usa as letras como desenhos e os associa.
depois disso é melhor tomar um sorvete antes de iniciarmos o caminho de volta para a nossa casa, afinal de contas, lulu achou o avião do patati e do patatá em pátio lotado.